Quem cuida de si não tiraniza o outro!
* Por Flavia Valadares
Setembro passado foi um mês bem difícil… Um colega cirurgião teve um AVC e sobreviveu. Outro colega também cirurgião teve um infarto fulminante e faleceu no meio de um plantão.
Ademais do luto pela perda, vivemos atualmente intensas reflexões sobre formas de exercício da medicina, formas de exercício de toda profissão e, sobretudo, formas de viver a vida.
Todo mundo pode encontrar alguma desculpa para não se cuidar, mas a medicina é especialmente pródiga na autonegligência, com a benção e o aval social. Médicos tendem a considerar o paciente como “corpo sem pensamento”, ao passo que se consideram “pensamento sem corpo”. Dessa confusão se originam os maiores problemas da atualidade. Vou me ater à segunda idéia.
É bem comum as pessoas procurarem cursar a medicina com um desejo (irreal) de superação da doença e da morte. Assim, ficam “cegas” ao sofrimento do outro (tentando negar o próprio sofrimento e finitude). Do mesmo modo, negligenciam seu lado humano: trabalhando horas a fio sem descanso, alimentação inadequada em quantidade e qualidade, cultivando relações de competição, vaidade e prepotência, mantendo ilusões de controle.
Que sejamos capazes de aprender com as mazelas dos outros: sejam pacientes, sejam colegas, sejam colegas-pacientes. O remédio para muitos males do mundo pode ser dividido em pequenas frações de autocuidado. Comer bem (escolhas equilibradas que permitam prazer e socialização). Dormir bem (em horas e em tranquilidade de consciência). Assumir a própria vulnerabilidade (é difícil, mas traz muuuuito alívio e ajuda sobremaneira na construção da empatia). Cultivar relações nutritivas no trabalho, na família e na vida afora. Desapegar-se da necessidade de controlar o incontrolável (quiçá o controlável).
Importante lembrar: quem cuida de si não tiraniza o outro (Foulcault). Tradução: gente feliz não enche o saco (nem o próprio nem o de niguém). Mais uma lembrança ótima: quem está sobrecarregado não está cuidando só de si… Aliás pode até nem estar se cuidando…
Carpe diem!
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Flávia Valadares: cirurgiã oncológica, aprendendo a ensinar medicina, curiosa demais, bicho-do-mato cosmopolita, ex-obesa, “metamorfose ambulante” em busca de equilíbrio e paz, expressando cada dia mais seu amor firme e fluido por si e pelos outros.