Muito além da gula

* Por Flávia Valadares

Quando a gente é gordo, existe a seguinte ambivalência: queremos emagrecer, mas não queremos. Como assim? Queremos emagrecer para sermos aceitos na sociedade (e talvez até amados!), mas, ao mesmo tempo não queremos porque a gordura nos distrai dos nossos outros defeitos (mais sombrios até). Limitações humanas como vaidade, inveja, luxúria, ira e avareza ficam encobertas pela gula somada a uma dose de preguiça. Então, humanamente vamos sanfonando o peso e as idéias tentando e fracassando no processo de emagrecer. Tentando para recebermos empatia. Fracassando para não mergulharmos fundo na nossa própria sombra. 

Peço licença poética para colocar as sombras em termos de “pecados”, mas sem moralismo. Engana-se quem pensa que o predomínio é da gula…

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Vaidade A vaidade consiste em nutrirmos uma visão irreal do nosso próprio corpo, como se não nos enxergássemos gordos. Vaidade também ao pensar que ser gordo é nosso único defeito, estando separados da santidade apenas por uma (espessa) camada de gordura.

Inveja Inveja dos que são simplesmente humanos, que ora são aceitos e ora são rejeitados. Inveja de quem protagoniza a própria vida, em vez de vivermos como meros observadores “café-com-leite” nos jogos da educação física e também nos jogos amorosos.

Luxúria A camada de gordura é diretamente proporcional ao desejo: uma prisão de segurança máxima para acorrenta-lo e isolá-lo de nós mesmos e do mundo. Criamos uma barreira física ao contato humano. O que dizer da magnitude das barreiras psíquicas?

Ira Comer como uma tentativa de tamponar a raiva não elaborada. Quando a gente se enfurece, empanturra-se… Assim mantemos o bom-mocismo e a simpatia a toda hora. Afinal, gordo tem que ser “gente fina” para sobreviver na sociedade. Mais fundo, engordar traduz um certo ódio contra a gente mesmo. É uma manifestação do não-amor próprio. Uma vez que amor é ação, não se cuidar e não se amar são indissociáveis e alimentam o ciclo vicioso.

Avareza Engordar é fruto de uma mentalidade de escassez, que nos leva a armazenar o alimento no próprio corpo, em vez de crer que o fluxo da vida irá nos nutrir. Crer na abundância nos ajuda a cultivar a serenidade e a tolerância às pequenas frustrações do dia-a-dia. Crer no movimento constante nos permite o desapego dos excessos: de alimento, de culpa, de isolamento, de medo, de cobrança, de controle.

Preguiça Engordar representa preguiça em abrirmos mão de escolhas automáticas e arriscarmos o novo. Preguiça = medo de mudança. Isso sem contar a preguiça em lidar com os verdadeiros dilemas existenciais humanos.

Gula O ato de comer é recheado de significados e repercussões. A gula é acompanhada pela culpa. O apetite saudável vem seguido de prazer. Engordamos quando polarizamos nosso apetite para a mesa, quando na verdade há um movimento entre os apetites de comer, de viver e de amar. Abrir mão do alimento como muleta emocional requer o equilíbrio entre comida que preenche os sentidos, amor (e sexo) que preenchem corpo e alma, e vida que preenche o ser.

A cura para a obesidade não é apenas ingerir menos e gastar mais calorias, mas sim viver mais, amar-se mais, amar mais o outro, extrair mais nutrientes das relações humanas, arriscar-se mais, desapegar-se mais, fluir mais, transar mais, cobrar-se menos. O antídoto verdadeiro é enxergar e mostrar nossa própria (inexorável) vulnerabilidade humana ao invés de simplesmente envolve-la em gordura.

Sucesso a quem estiver nessa empreitada! Leveza de alma que contagiará o corpo, e vice-versa!

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Captura de Tela 2014-10-06 às 18.35.09Flávia Valadares: cirurgiã oncológica, aprendendo a ensinar medicina, curiosa demais, bicho-do-mato cosmopolita, ex-obesa, “metamorfose ambulante” em busca de equilíbrio e paz, expressando cada dia mais seu amor firme e fluido por si e pelos outros.

About the author

Sonhador nato, psicólogo provocador, apaixonado convicto, escritor de "Como se libertar do ex" e empresário. Adora contar e ouvir histórias de vida. Nas demais horas medita, faz dança de salão e lava pratos.

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