Amizade
* Por Frederico Mattos
Muitas pessoas tentam definir a amizade de um jeito especial e cheio de afeto, além disso eu vejo a amizade como uma jornada de testemunhas cúmplices, que se emprestam amorosamente uma a outra mas que nunca se pretendem fundir.
Pense comigo e imagine uma conversa de duas amigas:
– Ai amiga falei com Fernando, ele foi meio frio e nem falou comigo direito…
– Que é isso, amiga, você é muito querida ele é meio estranho mesmo, sai dessa – replica a amiga apoiadora.
O que você notam nessa conversa? Eu reparei em 6 coisas
1- Ambas estão vivendo suas jornadas pessoais, que independem da amizade.
2- Elas compartilham suas experiências de forma independente da amizade.
3- Aconselham-se e desabafam mutuamente, preservando a amizade.
4- Existe um certo distanciamento saudável para essa ajuda acontecer sem mágoas.
5- Elas estão juntas, mas paradoxalmente separadas.
6- Depois da conversa cada uma vai para a sua casa e segue fazendo suas escolhas pessoais, preservando a amizade.
O amigo de forma geral preenche uma necessidade muito especifica de compartilhamento de experiências da vida pessoal trazendo uma sensação de intimidade profunda, mas sem que ninguém se perca em melindres exagerados (pelo menos as amizades de gente que não age como pré-adolescente).
Como se você tivesse uma vida própria que seu amigo testemunha e não está necessariamente implicado até as profundezas. O olhar amigo tem essa qualidade de elasticidade que permite que o outro mate alguém (exagero) e mesmo assim a amizade permaneça.
Limite da amizade
Mesmo quando vão num show fantástico cada amigo se sente no seu filme pessoal e o amigo como um ator coadjuvante da história. Já quando estão isolados um do outro no trabalho ou numa paquera por exemplo sentem-se a sós consigo mesmos. Nessa hora pensam: “preciso contar para a minha amiga”, ou seja, buscar uma testemunha que contradiga ou confirme nossas impressões.
Nesse sentido eu vejo uma beleza no olhar amigo como se você emprestasse os olhos (e o coração) do amigo para ajudar a olhar e sentir a si mesmo. Quase como se fosse uma testemunha alternativa de si mesmo.
Quando o amigo se apaixona
Esse é o grande problema de se apaixonar pelo amigo, pois a qualidade desse olhar isento de qualquer intenção mais pessoal desaparece. Na hora que o desejo amoroso surge certas liberdades na conversa são colocadas de lado, pois o desejo sexual se alimenta de uma certa pureza e até cegueira. Para muitos é difícil saber do passado amoroso da pessoa amada ou reconhecer hábitos e traços de personalidade ruins. Se a amizade vira namoro todo esses “podres” entram no pacote.
Quando um amigo conta algo de si ele sente o conforto de que o ouvinte não esteja suspirando acordado e tendo desejos sexuais. Ele conta com uma isenção de intenções que não o façam selecionar o conteúdo e a espontaneidade do relato. Isso revela algo cruel sobre os relacionamentos amorosos: em muitos momentos estamos sustentando uma imagem levemente ideal de nós mesmos para a pessoa amada.
Amizade sobrevive a um namoro?
Quando as pessoas entram num relacionamento amoroso passam a dedicar grande parte do seu tempo ao relacionamento, pois aquilo pertence à sua vida e o amigo (que serve como esse olhar amoroso que corre em paralelo) é deixado um pouco de lado. Se o amigo tem sabedoria ele próprio irá desenvolver sua vida pessoal paralelamente (ainda que existam aqueles amigos que não entendem e se magoam), pois a vida segue para todos.
De tempos em tempos (numa fase madura que isso é mais natural) eles se encontram, colocam o assunto em dia, não se ressentem da distância e aproveitam para emprestar o olhar valioso do amigo.
Esse é motivo pelo qual mesmo durante anos é possível que uma amizade sobreviva a muitas mudanças, pois de modo geral não exigimos do amigo que ele permaneça radicalmente o mesmo (como fazemos em relacionamentos amorosos).
A amizade resiste ao tempo porque nos permitimos que não seja exclusivista ou passional, como acontece com os relacionamentos amorosos. Buscamos esse testemunho mais livre de distorções e contaminações de possessividade/ciúmes que há num relacionamento amoroso.
Diferenças entre amizade e amor romântico
Se a pessoa amada quer viajar 3 meses pela Europa recriminamos porque ela é vista como “nossa posse”. Já o amigo pode fazer isso, pois apesar de ser nosso amigo não nos pertence.
Se a pessoa amada passa a se comportar de um jeito diferente ou muda de gosto musical reivindicamos que volte ao seu estado original (e previsível) para garantir que é o mesmo (e nós também). Já o amigo pode mudar de banda favorita, time de futebol, religião e de alguma forma toleramos mais essas mudanças sem grandes perturbações porque a amizade não se alimenta somente dos gostos pessoais e dos lugares frequentados.
Isso explica porque mesmo que estejamos num relacionamento amoroso não perdemos ou deixamos as amizades, pois ali confidenciamos coisas que num relacionamento amoroso consideraríamos terríveis e ofensivas. O casal precisaria emprestar esse olhar amigo (e maduro) para ouvir certas visões que temos do mundo e mesmo assim sustentar a admiração e o encanto apaixonado.
Quando ela acaba?
Quando esse pacto de confiança, lealdade, sigilo e sincronia paralela vai embora.
Por essas razões que considero muito especial o estado mental que sustentamos na amizade, ou seja, não é a amizade em si que cria esse olhar, mas a maneira que enxergamos alguém. Esse olhar pode ser mudado o tempo todo, não é exclusivo da amizade.
E se somos capazes de imprimir essa liberdade numa relação a dois (amigos) em que a felicidade (e não o controle) seja o prato principal, porque não exercitar isso com todas as pessoas que amamos?
Ps: agora não adianta alegar que é difícil ou impossível, pois se consegue fazer isso com os amigos é possível com qualquer um, desde que você queira.
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* Frederico Mattos: Sonhador nato, psicólogo provocador, autor do livro “Como se libertar do ex” [clique aqui para comprar] e “Mães que amam demais”. Adora contar e ouvir histórias de vida. Nas demais horas cultiva um bonsai, lava pratos, oferece treinamentos de maturidade emocional no Treino Sobre a Vida e se aconchega nos braços do seu amor, Juliana. No twitter é @fredmattos e no instagram http://instagram.com/fredmattos – Frederico A. S. O. Mattos CRP 06/77094