Raízes da traição amorosa
Recebi um email e tirei um trecho que me chamou a atenção.
“Durante anos eu sobrevivi emocionalmente como um fantasma. Ele só via a esposa que tinha e não como se eu fosse uma pessoa.”
Eu diria que essa é uma das raízes para a traição humana num relacionamento amoroso. Esse anonimato emocional é uma das dores mais intensas que alguém pode viver num relacionamento amoroso.
É relativamente comum esse cenário em que as pessoas se solidificam num certo papel e esquecem a complexidade de que são compostas. O mesmo fazemos com os outros, congelamos sua identidade como alguém que se ausenta de pensar e pesquisar com mais cuidado quem é de fato aquela pessoa a quem chama “meu amor”.
O “meu amor” perdeu sua identidade própria e ficou restrita a funções de “me amar”, “me reafirmar”, “me adular”, “me desejar”, em resumo a tudo que diga respeito a mim e não a ela de fato.
Se ela sofre, se abate ou enraivece é sempre em função dos meus desejos que a julgo. O que ela pensa e sente de fato não importa. Nessa hora somos incapazes de perceber a identidade essencial da outra pessoa, mas apenas do papel que cumpre em nossas vidas.
A mãe já não é uma pessoa com suas vulnerabilidades, mas apenas a torre de certezas, conselhos e força que se oferece do alto seu amor inesgotável e puro de intenções menores. Tiramos da mãe o direito de ser gente.
Quando isso acontece com a mãe ninguém se indigna em reduzi-la a maternidade. Ela própria se vangloria dessa cegueira funcional e se perde também as vezes acreditando-se invencível. Vez ou outra se decepciona consigo mesmo quando vê a realidade de sua humanidade falível e cai na real: o papel de mãe inquestionável não dura para sempre.
Agora quando se trata de relacionamento amoroso somos implacáveis quando a pessoa amada nos olha de forma restrita. Bradamos insatisfeitos: “presta atenção no que estou falando”, “você não me olha como antes”, “você só ouve o que quer”. Todas essas variações são apelos para sermos vistos como alguém que existe para além do papel funcional.
O que o Ricardão ou a secretaria vêem que o marido e a esposa de anos não vêem? Vislumbres da pessoa que estavam perdidos no papel que cumpriam.
Aquele cara engraçado que a esposa achou lindo no dia da paquera passou a ser o mala inconveniente no papel de marido. A secretaria dá gargalhadas com as piadas tímidas daquele cara que já não achava que poderia fazer uma mulher rir.
Aquela leveza que muitos anos atras foram alvo de interesse e tesão perdeu o encanto aos olhos do já não tão jovem marido. Hoje ela só consegue ser vista daquele jeito pelo colega do trabalho e se sente livre como nunca quando é olhada sem o peso do matrimonio.
Como eu disse, essa cegueira funcional não é exclusividade do casamento e nem de homens ou mulheres, mas de qualquer mente preguiçosa em se aprofundar na intimidade ao mesmo tempo que pode brincar de olhar tudo como a primeira vez.
A traição é sempre um convite doloroso para renovar o olhar.
Aquele marido visto com ranço ou aquela mulher que parecia insossa ganha novo colorido aos nossos olhos. Lembramos que havia vida e desejo ali e tentamos a qualquer custo resgatar o que estava enterrado. Apesar da raiva o sujeito traído volta a passar o perfume empoeirado e a falar com mais cuidado. Por honra ou humilhação percebe que deixou a peteca cair. Ao invés de olhar para si mesmo com uma perspectiva renovada e se admitir co-criador da traição muitos passam anos e anos com o dedo covarde apontado cobrando reparação emocional.
Se por um minuto considerasse que também havia se entregado em passividade haveria esperança.