Você ama minha sujeira
Sempre que me perguntam o que realmente leva um casal a permancer junto eu dou uma resposta boba e cheia de esperança. Não gosto de melar esperanças alheias logo de cara.
O que tenho notado é que os casais se escolhem por motivos conscientes e cheios de valores nobres, mas aquilo que os une por longo tempo é um acordo silencioso entre aquilo que tem de pior, ainda que nem saibam.
É como um pacto sombrio.
Enquanto os dois permanecem naquela fase inicial de encenação em que cada um demonstra o seu lado puro, benevolente e honesto o relacionamento ainda não começou. É leve, suave, doce e terno. Qualquer pessoa suporta essa fase encantada, mesmo assim ninguém consegue conviver com um deus encantado e cheio de perfeição por muito tempo. Sem perceber nos nivelamos por baixo e queremos sentir que não guardamos a podridão sozinhos.
Essa é a etapa mais delicada de um relacionamento, quando as máscaras caem.
Me lembro de um paciente com o qual me identifiquei e que percebeu sua fachada de bom moço ruir num ímpeto de raiva. Sua pretendente até aquele momento disse: “que alívio, finalmente estou me relacionando com uma pessoa real, até agora eu achei que era uma doente por ser humana e você perfeito”. A relação deles cresceu à galope, como nunca.
Nessa etapa a maior parte dos casais não resiste, pois na medida que o lado obscuro da personalidade de um se manifesta o outro é forçado, ainda que não queira, a se desnudar um pouco mais.
Brinco que o relacionamento amoroso é um ralador de ego ao qual não se consegue escapar. Se você fingir que não é com você fatalmente o relacionamento será um peça de teatro mal encenada.
Uma relação duradoura carece de uma boa dose de verdade para se sustentar ao longo do tempo. Ficar no faz-de-conta só enfraquece a legitimidade do amor.
Quando o casal consegue chegar em bons acordos com suas limitações individuais (e como casal) alguma interação saudável é possível. O contrário é verdadeiro, pois ao tentar sustentar uma imagem idealizada de si mesmo aos olhos do outro o trabalho será monstruoso se o objetivo é criar um vínculo sólido e cotidiano.
Imagine você tentar esconder o quanto é orgulhoso ou egocêntrico numa relação de 10 ou 15 anos? Já é desgastante lidar com as consequências do orgulho, quanto mais lidar com os impasses de sua ocultação.
O tempo vai sempre revelar cada uma das armadilhas que nos metemos.
Sei que por trás de cada bela fachada existe uma história densa a ser revelada. Até hoje nunca vi uma única pessoa, por melhor e mais nobre que parecesse, sem um traço de dor, episódio controverso ou sujeira escondida debaixo do tapete.
Momentos de crise no relacionamento são excelentes para que ambos se revelem a si mesmos e um ao outro. A bagunça que vem à tona traz uma vigor descomunal para a relação. O brilho no olho reacende com força total. A verdade dura liberta o amor recolhido em vidas pomposas e mornas.
Quando um casal consegue se sintonizar nessa dimensão oculta e em alguma medida se completar na obscuridade de si mesmo, acho que aí sim, tem alguma chance de sobreviver.
Sem isso, vejo o casal e penso: “café com leite!”
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